Município deve indenizar por demora em diagnóstico de câncer

Biopsia foi realizada cinco meses após busca por atendimento.

“Fato é que o diagnóstico de câncer levou mais de 150 dias para ser feito. Nem se diga que teria o genitor dos autores buscado atendimento médico para meros exames de rotina, porque já apresentava pápula na cervical à esquerda nessa data, com ulceração da lesão em julho e sangramento em agosto, bem como perda de 10 quilos em oito meses.[…]
 

A 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve decisão que condenou o Município de Guaratinguetá a indenizar, por danos morais, a família de paciente que faleceu de câncer após demora do serviço público em diagnosticar a doença. O valor da reparação foi fixado e R$ 25 mil.
De acordo com os autos, o paciente procurou o serviço de saúde em abril, porém, foi diagnosticado apenas cinco meses depois, em setembro do mesmo ano, e só então passou a receber o tratamento adequado.

Não seja enganado pelo plano de saúde

Para a relatora do recurso, desembargadora Teresa Ramos Marques, o tratamento oferecido não afasta a demora do diagnóstico de neoplasia maligna.

“Fato é que o diagnóstico de câncer levou mais de 150 dias para ser feito. Nem se diga que teria o genitor dos autores buscado atendimento médico para meros exames de rotina, porque já apresentava pápula na cervical à esquerda nessa data, com ulceração da lesão em julho e sangramento em agosto, bem como perda de 10 quilos em oito meses. É dizer, esse quadro já indicava, no mínimo, suspeita de algo mais grave”, pontuou.

“Elementar o dano moral consistente no sofrimento dos autores com o tratamento dispensado ao seu genitor (in re ipsa), tendo de vê-lo desamparado a definhar diante de uma doença sinistra e cruel. Ainda que inevitável o desfecho trágico, poderia ter sido reduzida a dor do genitor, bem como prolongada a sua vida.”

O julgamento, de votação unânime, teve a participação dos desembargadores Antonio Carlos Villen e Antonio Celso Aguilar Cortez.

Apelação nº 1002273-61.2017.8.26.0220.

Fonte: TJSP

 

Acórdão na íntegra abaixo:

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2021.0000232838

10ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO
APELAÇÃO CÍVEL: 1002273-61.2017.8.26.0220

EMENTA

RESPONSABILIDADE CIVIL. Rede municipal de saúde – Atendimento – Neoplasia- maligna – Diagnóstico – Demora – Ocorrência – Responsabilidade civil subjetiva – Possibilidade: –A conduta omissiva do Estado atrai a responsabilidade civil subjetiva, justificando condenação quando demonstrada a falha do serviço público por negligência.

RELATÓRIO

Sentença de (i) procedência para condenar o Município a pagar a cada autor R$ 25 mil de indenização por danos morais, corrigidos desde o arbitramento (Súmula 362 do STJ) e acrescidos de juros de 1% ao mês a partir da citação, custas e honorários pelo Municípios, fixados em 15% do valor da condenação; e de (ii) improcedência em relação à Fazenda.

Apela o Município (fls. 671/679), alegando que não há qualquer responsabilidade imputável à Administração pela demora no diagnóstico de câncer do genitor dos autores. Comprovou-se que os exames foram realizados e que o paciente foi atendido em 21.9.2016, devidamente diagnosticado, iniciando-se o tratamento em 20.10.2016 no Hospital das Clínicas em São Paulo. Logo, observado o prazo de 60 dias da Lei 12.732/12. Exames clínicos e de imagens foram realizados em 12.7.2016. O exame de laringoscopia foi feito pela rede privada, por opção dos familiares. A alegada falta da realização de uma biópsia, como disse o juiz, deveria ser solicitada pelo médico, fugindo da correta análise do caso clínico. O paciente estava debilitado. Subsidiariamente, o valor indenizatório é excessivo. Os autores não provaram o dano moral. O paciente necessitava de procedimento de alta complexidade, de responsabilidade do Estado. Também devem ser reduzidos os honorários.

Houve contrarrazões (fls. 683/688).

FUNDAMENTOS

1. Fica a sentença mantida por seus próprios fundamentos:
“É o relatório. Fundamento e decido.
As preliminares já foram afastadas. E, quanto ao chamamento ao processo da Fazenda Estadual pelo Município, foi deferido, já havendo contestação nos autos.
Não obstante, observa-se que a participação do Estado no tratamento do falecido pai dos autores se deu de forma eficaz a partir de sua inclusão no sistema CROSS em 21/9/2016, conforme o próprio Município informa às fls. 624. Após a solicitação do tratamento adequado ao caso do paciente, houve sua internação junto ao Hospital das Clínicas em 20/10/2016, quando se deu o início de seu tratamento (fls. 624).
E, de fato, a partir de então os próprios autores não relatam demora, desídia ou falha na prestação do serviço público, com exceção dos materiais necessários para continuidade do tratamento em casa após alta daquele hospital, razão da propositura de anterior ação judicial para compelir o Município a fornecer remédios e insumos necessários para atenuar a dor ocasionado pela moléstia grave que acometeu o pai dos autores.
E, além de ter havido demora no cumprimento da decisão judicial que determinou fosse o falecido assistido em suas necessidades básicas de tratamento, o fato é que seu sofrimento foi agravado pela demora no diagnóstico da doença (câncer).
Não se pode atribuir relação de causalidade entre o óbito e a omissão do Município, é verdade. Porém, houve demora excessiva no início do tratamento do falecido para que pudesse ser assistido adequadamente, amenizada sua dor ou até mesmo prolongada sua sobrevida.
É de se notar que, na hipótese dos autos, ficou comprovado que o falecido procurou o serviço de saúde do Município em abril de 2016 (fls. 623), porém somente obteve o diagnóstico em 21 de setembro do mesmo ano. Cinco meses foram necessários para se diagnosticar a moléstia grave, período suficiente para que a doença avançasse de forma avassaladora e cruel sem que qualquer paliativo fosse implementado no período.
Não é verdade que o Sr. José Carlos da Silva procurou o serviço público de saúde em 19/04/2016 para exames de rotina (fls. 623), ao contrário, já apresentava pápula na cervical à esquerda desde então, tanto é que tal informação consta do sumário clínico de fls. 465, com registro de ulceração da lesão desde julho do mesmo ano (há quatro meses da data do relatório feito em novembro de 2016) e com sangramento há três meses, isto é, desde agosto do mesmo ano.
Como se vê, a pápula se tornou uma úlcera e com sangramento desde agosto e somente em setembro houve diagnóstico da doença, demora excessiva, portanto, para a identificação da displasia maligna.

Consta do relatório referido (fls. 465) que “realizou acompanhamento externo com cirurgião de cabeça e pescoço, porém não realizou biópsia da lesão, apenas exames de imagem”.
Assim, ainda que tenha sido atendido por especialista e que não seja verdade que houve demora no atendimento por falta de médico que se desligou da Secretaria Municipal de Saúde em agosto de 2016, o fato é que desde julho o médico especialista deveria ter chegado ao diagnóstico por uma simples biópsia, exame que não foi feito, apenas exame de imagem com demora na conclusão do diagnóstico, enquanto o sofrimento do paciente só aumentava inclusive com sangramento da lesão e perda de 10 kg em oito meses.
Evidentemente que não se cobra o resultado cura da doença grave, mas, no caso dos autos, não houve sequer diagnóstico, que poderia ter ocorrido muito antes para o atendimento adequado do paciente. Então, houve negligência nos meios disponíveis para diagnosticar e amenizar os efeitos da doença, ainda que o óbito fosse inevitável, especialmente pela falta da biópsia depois de diversos atendimentos inconclusivos pela rede municipal.
Em caso análogo, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
(…)
Assim, apesar de iniciado o tratamento oncológico dentro do prazo de sessenta dias estabelecido pelo artigo 2º, da Lei 12.732/12, houve demora de mais de cento e cinquenta dias para se chegar ao diagnóstico da doença, o que é tempo desproporcional ao que dispõe a lei para início das medidas de radioterapia/quimioterapia ou similares.
Pela demora no diagnóstico, que pode ter ocorrido por falha na prestação do serviço médico ou por falta meios para a realização rápida dos exames no Município, houve sofrimento exacerbado do paciente e sua família.
Não altera o quadro o fato de ter ou não os filhos interrompidos contrato de trabalho por conta da moléstia. O fato é que se viram todos diante de incertezas e sofrimentos não amenizados pelo serviço público de saúde.
O dano moral decorre de tal período de sofrimento e angústia, e não do óbito em si, decorrente da doença grave, mas com certeza o constrangimento de não se chegar a uma resposta médica durante cinco meses extrapola os limites da razoabilidade das dificuldades do cotidiano e da realização de exames.
Posto isso, considerando que são dois os autores, que se angustiaram por período considerável diante do sofrimento do pai, levando-se em consideração as condições econômicas das partes, consequências e circunstâncias do fato, é razoável a fixação do valor da indenização em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) para cada um deles, totalizando R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais)”.

Como se vê, a sentença analisou detidamente o prontuário do genitor dos autores para concluir que houve excessiva demora do Município no seu diagnóstico.

O quadro temporal sobre o qual se escora o apelante é diverso daquele no qual a sentença, acertadamente, vislumbrou a aduzida demora excessiva, ou seja, a Administração indica datas relativas a período no qual os autores não reclamam mais de desídia.

Acontece que o tratamento correto nesse momento não afasta a demora no período anterior, i.e., aquele pertinente ao diagnóstico de neoplasia maligna.

Por sinal, o próprio Município afirma ter feito o diagnóstico em 21.9.2016.
Entretanto, o falecido já havia buscado atendimento médico em abril daquele mesmo ano (fl. 623), de modo que se consta a demora de 5 meses no diagnóstico.

Nem se diga que teria o genitor dos autores buscado atendimento médico em abril de 2016 para meros exames de rotina, porque já apresentava pápula na cervical à esquerda nessa data (fl. 465), com ulceração da lesão em julho e sangramento em agosto, bem como perda de 10kg em oito meses.

É dizer, esse quadro já indicava, no mínimo, suspeita de algo mais grave.
Ressalte-se a notoriedade da necessidade de biópsia para confirmação de diagnóstico de câncer.

Não bastasse, intimadas as partes a produzir provas, nada pleiteou o Município a respeito de eventual perícia para avaliar a apontada demora no diagnóstico.

Mas ainda que se entenda pela absoluta discricionariedade do médico que atendera o genitor dos autores a porventura enfraquecer a tese autoral, fato é que o diagnóstico de câncer levou mais de 150 dias para ser feito. Aliás, a busca pela rede privada só exemplifica a demora no atendimento pela rede pública, do contrário, teriam os autores, evidentemente, buscado a rede privada desde o início, e não como última alternativa.

Ainda, o prazo de 60 dias previsto no art. 2º da Lei 12.732/12 diz respeito ao início do tratamento de câncer quando já diagnosticado, não se confundindo, portanto, com o próprio diagnóstico. Frise-se que, uma vez diagnosticado o pai dos autores, estes não mais reclamaram de demora no tratamento.

Ato contínuo, irrelevante o quadro clínico do paciente, porque não tem pertinência quanto ao prazo para diagnóstico. Em realidade, se alguma pertinência tem, é justamente o de evidenciar ainda mais a urgência do caso, reforçando a apontada demora no diagnóstico a revelar a falha no serviço.

Igualmente desimportante a complexidade do tratamento a ser dispensado, pois a falha do serviço consistiu na demora do diagnóstico, não no posterior tratamento contra a patologia já diagnosticada, como dito.

Logo, preenchidos os requisitos para configuração da responsabilidade civil do Município: conduta (demora no diagnóstico), dano (dano moral aos autores), nexo de causalidade (dano moral provocado pela demora no diagnóstico) e culpa (negligência na demora do diagnóstico).

2. Quanto ao valor indenizatório, embora a estipulação dos danos morais tenha uma carga de subjetividade, a jurisprudência tem traçado parâmetros.
Assim, deve o magistrado, de um lado, considerar as consequências causadas pelo dano à personalidade da vítima, permitindo, quanto possível, a sua reparação (aspecto reparatório), e, de outro, coibir a reiteração da conduta ilícita pelo ofensor (aspecto pedagógico).

No presente caso, elementar o dano moral consistente no sofrimento dos autores com o tratamento dispensado ao seu genitor (in re ipsa), tendo de vê-lo desamparado a definhar diante de uma doença sinistra e cruel. Ainda que inevitável o desfecho trágico, poderia ter sido reduzida a dor do genitor, bem como prolongada a sua vida.

Nesse contexto, absolutamente razoável a fixação de R$ 25 mil para cada um dos dois autores, beirando a má-fé o argumento do Município de haver enriquecimento ilícito dos apelados, que viram o próprio pai, durante meses, sofrer sem que recebesse a devida atenção e tratamento que o seu quadro demandava.

3. O mesmo se diga quanto aos honorários, pois o percentual de 15% está dentro dos limites estipulados pelo art. 85, § 3º, I, do NCPC.
Ademais, o Município não indicou o mais remoto argumento a justificar a pretendida redução.

4. Por fim, seria o caso de reformar a sentença tão somente quanto à taxa de juros, pois não aplicada a Lei 11.960/09, lembrando-se que se trata de matéria de ordem pública (AgInt no REsp 1.742.460/CE, 1ª Turma, rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado em 14.9.2020), cognoscível, portanto, de ofício.
Entretanto, não houve contraditório a seu respeito, de modo que vedada a atuação nesse caso por expressa impeditivo legal (art. 10 do NCPC).

Destarte, pelo meu voto, nego provimento ao recurso, majorados os honorários para 17,5% do valor atualizado da condenação.

Faculto aos interessados manifestação em dez dias de eventual oposição a julgamento virtual de recurso futuro para sustentação oral.

TERESA RAMOS MARQUES
RELATORA

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